sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Nós e os nós

Uma das gostosas recordações da infância é a lembrança que tenho de minha mãe sentada à máquina de costura. Entre uma costura e outra havia reparos para fazer à mão, com agulha e linha. Por volta dos oito anos eu brincava, aproveitando elásticos, botões, e retalhos coloridos para fazer as roupinhas das minhas filhas. Certa vez vendia peças para amigas. Cheguei a confeccionar bonecas de pano, porém nunca se interessavam e eu ganhava novas filhas. Aliás, minhas bonecas eram únicas!
 Nunca saiam iguais, nem utilizando os moldes que eu mesma fazia. Uma perna ou braço ficava um pouco maior que o outro ou um olho ou orelha um pouquinho desalinhados. Minhas amigas não sabiam a beleza que estavam perdendo: teriam modelos exclusivos. Deixa pra lá.

Bonecas ou roupinhas, não importava, eu sempre costurava à mão. Tinha até um dedal para evitar ferimentos ao lidar com os tecidos mais grossos, contudo não gostava muito de usá-lo. Não me acertava, vivia deixando o tal objeto cair. Outra coisa que eu não simpatizava era trocar a linha da agulha. O buraco era tão miúdo que a ponta esfiapada custava a encontrar. O fio também acabava tão rápido que eu preferia – quando estava longe do olhar de minha mãe – cortar um bom pedaço para adiantar o trabalho. Ocorria que a linha longa demais enozava toda a cada ponto. Além do desperdício, pois nesta situação não há como dar pontos com nó, havia o retrabalho de corta-estica-enfia-amarra. “Coisa de mulher preguiçosa, que por fim só põe linha fora”, ralhava ela. A tirada (sempre da mesma cor do tecido para resultar num trabalho caprichoso) não poderia ser exagerada. Nada de maçaroca.

Detalhes como dar pontos do mesmo tamanho e bem alinhados me eram igualmente frisados. E jamais poderia esquecer de guardar a agulha com algum pedaço de linha. Como eu iria encontrá-la depois, caso caísse da almofadinha? Nunca esqueci os ensinamentos maternos, esse dentre outros também importantes para a vida doméstica, para passar uma boa impressão para marido e sogra, ou para dar conta do recado quando a mãe não estivesse por perto. Ou mesmo para não ficar desempregada, pois boas costureiras ganham dinheiro. Mais tarde fui incentivada a costurar à máquina. Devo ter conseguido costurar uns dez centímetros na máquina reta, já que overlok sempre me causou medo. Algo me dizia que perderia os dedos. Melhor era não duvidar. Não saí uma costureira, como desejava minha mãe. Aqui cabe uma consideração especial: no íntimo, ela sempre soube o que eu não seria. Sobretudo era fundamental me apresentar às possibilidades.

Como fruto, penso que tenha me saído uma mulher atenta aos detalhes, intentando sempre o melhor resultado (como quando desmanchava as costuras dos vestidinhos ou pedia mais retalhos para tentar algo melhor) cuidadosa, pois há que se ter determinação ao lidar com tecidos mais grossos. Não os da costura, mas os do cotidiano. Como nunca gostei de dedais, agulhas ligeiras ousam ferir-me os dedos. Então escolho um tecido mais leve, mais delicado. Ou boas costureiras. Ou roupas prontas. Nesta procura, haja tato, já que às vezes não tenho idéia do que quero usar: mas sempre soube o que não quero, o que não gosto, o que não combina comigo. No dia-a-dia, aposto nisso, nas melhores alternativas. O único detalhe é que na tirada de linha da costura cotidiana é possível pontos com nó. Escolho fazer escolhas.


=)

Do alto dos seus 79 anos entre um afazer ou outro, dona Dilma conserva o hobby. Sentada à máquina, sempre surge o que consertar. Vive inventando ao lado do seu cúmplice, o rádio, normalmente ligado na Tubá, emissora AM católica. Pela manhã, a senhorinha fica atenta aos noticiários; à tarde, às músicas sertanejas ‘do seu tempo’. Quando a letra lhe foge à memória ela acompanha a melodia assobiando afinadamente. Enquanto isso, estou em algum lugar consertando frase e costurando parágrafos que formarão algumas das notícias que ela vai ouvir na mesma tarde ou na manhã seguinte. Ou não, caetanamente falando.

5 comentários:

tatiana cobbett disse...

que delícia de texto....tem calor e nos envolve com harmoniosa sonoridade.....no levando a assobiar com os alinhavos do afeto.... beijares de paparabéns flor querida!!!!

Marcia Silva disse...

Tatáaa,
você não só canta, mas encanta... Nos encanta por onde passa... Percebidamente, sempre...
Que gostosa visita!
Compartilhemos beijares!

Unknown disse...

Olá Marcia, como são boas nossas Abstrações da infância, mas as que são descritas pela sua arte da escrita, parece que só existem nos livros de estórias encantadas...
Me emocionam.

Marcia Silva disse...

Gev,
as boas lembranças, por seu quê de nostalgia, sempre emocionam... Essa sensibilidade nos é importante; que sempre exercitemos o sentir.
Abração!

Professor Luiz Kons disse...

Parabéns pelo belo texto querida.

Realmente nossas mães são fantásticas. Com certeza o jeito simples de nos ensinar a viver, a ser feliz com pouco, nos tornaram os seres humanos que somos hoje.
Como costumo dizer, Dona Dilma é um dos grandes seres HUMANOS que tive a honra de conhecer e conviver. Com seu jeito simples e sua sabedoria contagia a todos aos seus redor.
Que Deus possa ajudá-la a recuperar a saúde para que volte a nos acordar com suas cantorias e assobios deliciosos.
Bjão.